quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Livro de esquecimento


Éverton Santos




     Ser esquecido é como estar se afogando, agonizando por socorro, se debatendo em desespero, sem saber nadar, a poucos metros da areia ou da margem. Ninguém entra na água, ninguém pode salvar: o que resta do resto é um corpo entregue ao nada, uma matéria sem existência, um tênue registro do já-foi e do nada-mais-é.
     O ser esquecido dói mais do que a ferida de ver a pessoa que você ama te olhar nos olhos, seriamente, e ouvi-la dizer, em voz de veludo e violino, que não dá mais pra continuar com você. Esse é, pois, o início do pior esquecimento indigesto e intragável: o deixar-de-ser.
     Esquecer é não lembrar ou morrer na memória? É deixar, no não-mais, a história; é ver bailar a poeira como estrelas de pó sobre cada finito “Era uma vez...”. E, se viver é mesmo um livro de esquecimento, esquecer é, sobretudo, carregar um obscuro cemitério na cabeça.
      E o que falar de tudo o que morre e continua vivo nas reminiscências? E o que dizer de tudo o que fica morto na recordação de um e ainda mais vivo na vida de outro? E mais: como pode sobreviver aquilo que, nem querendo, vai deixar de ser agora apenas uma ideia?
     O esforço pra lembrar é a vontade de esquecer. E o esforço pra esquecer aguça o desejo de não mais lembrar. No entanto, a pressa de tirar da mente pode ser tanto uma necessidade quanto uma obrigação: necessidade de paz interior e obrigação de desfazer os nós que prendem os presentes e os futuros às amarras dos passados, em nome do por-vir.
     Entre o tempo e o vento há o passar. Entre eles e a memória, o sempre-lá.
     Quem lembra salva um afogado.

Imortalidade não é não morrer: é não ser esquecido.

Um comentário: