sexta-feira, 25 de outubro de 2013

À PROCURA DE UM SORRISO



Christina Ramalho

Folheava distraída o caderno de “Classificados”, quando um anúncio lhe chamou a atenção: “Procuro um sorriso para enfeitar meu rosto”.  Eu, hein, que tipo de anúncio é esse? Cada coisa que aparece... Quem em sã consciência pensaria em publicar algo assim? Procuro um sorriso... Ridículo... Bem, assim ela pensou, mas, ridículo ou não, o tal anúncio não lhe saiu da cabeça. O dia passou, arrastando suas horas sem novidades, e a lembrança do texto ia e vinha, provocando-lhe reflexões.
Procurar um sorriso para enfeitar o rosto. Que significado teria isso? Alguém triste e solitário fazendo um desabafo? Alguém à procura, na verdade, de um amor? E começou a pensar no próprio sorriso. Na verdade, andava sem motivos para sorrir. Lembrou-se do estado terminal da mãe, da falta de paciência do pai, sempre envolvido com o amor quase secreto que se arrastava há anos, da separação do irmão, do desemprego da irmã... Desfiou um rosário de lembranças sem sorrisos. Recordou-se da falta de dinheiro, da recente síndrome do pânico, da situação difícil da empresa onde trabalhava, do choro do bebê recém-nascido que lhe exasperava durante as madrugadas, do excesso de peso que não conseguia vencer... Nossa, pensou, chega disso! Que vida é essa? Será que também andarei carente de sorrisos?
Os problemas sumiram do pensamento. Mas não apagou a imagem da mãe. Tão magrinha, tão frágil, tão querida... Viu-se sentada na cadeirinha de vime enquanto a mãe lhe trançava os cabelos. Filha, você é tão linda! Depois se lembrou das longas conversas sobre namoros, paixões, meninos, rapazes, homens. Amiga e carinhosa. Essas eram as melhores palavras para definir sua mãe. Sorriu, antecipando saudades, umedecendo os olhos, mas sorriu, docemente.
O pai... Apesar de tudo, não conseguia ter raiva dele. A mãe definhando, o pai amando... A mãe morrendo, o pai se culpando... Tentava compreender o sentido de tudo aquilo. O pai nunca fora um bom marido. Essa era a verdade. Assim como era verdadeiro o ar de menino que mantinha no rosto desde a chegada daquela paixão. O mesmo ar de menino que ela registrara em suas memórias de filha mais velha. Ela e o pai na loja de animais, escolhendo um cãozinho. Escolha, filhinha, escolha um. E saíram de lá cheios de pacotes e acompanhados do Tuti, um beagle que lhe daria muito trabalho e muitas alegrias. Sorriu novamente, conseguindo separar o pai do marido da mãe.
O divórcio do irmão foi surpreendente. Dez anos de namoro, um de casamento. Curiosamente terminaram tudo sem alarde, sem brigas... Ao contrário, esbanjavam carinho um pelo outro. A família parecia sofrer mais que os dois. Recordou-se dos apelidos tenebrosos que os dois usavam. Tuquitinha, Tutuquinho, Flofi Flofi, Lelezinho, ... Usavam e continuavam a usar! Sorriu mais uma vez. Curiosos aqueles dois...
O desemprego da irmã era uma situação passageira. A irmã era brilhante. Claro que logo apareceria uma colocação... Talvez se angustiasse mais do que a própria irmã, que, naquele momento, estava envolvida com simpatias para arranjar emprego. Faladeira, a irmã ligava dia sim dia não relatando as experiências inusitadas. Ao final do telefonema, a irmã sempre tinha uma palavra esperançosa, que consolava a mais velha, como se o problema fosse desta. O otimismo da irmã lhe preencheu o coração. Sorriu novamente.
Dificuldades financeiras? Quem não as tem? Conseguiu achar engraçado o dia em que, enlouquecida com as dívidas, fez uns colarezinhos de contas coloridas e saiu oferecendo vizinhança afora. E não é que vendeu tudo? Riu de si mesma. Riu também quando lembrou ter chorado ao mesmo tempo em que o filhinho por puro desespero. Cala a boca, neném. Preciso dormir. Preciso dormir. Ai, Meu Deus, o que eu faço? Ele dormiu. Ela também. E, no dia seguinte, se enterneceu com o cheirinho de bebê recém-acordado que o pescoço do filho exalava. Sorriu, cheia de amor. E o pânico que lhe fez pular no colo do vizinho quando o elevador enguiçou? Até hoje percebia o sorrisinho fraterno que o sr. Amadeu lhe destinava quando se encontravam... Que vergonha! Mas riu... O emprego estava por um fio. Assim que terminasse a licença, voltaria. Porém, o que encontraria? O salário atrasado, o chefe emburrado, insatisfação geral... Mas a última confraternização de Natal tinha sido tão boa, tão divertida. Paulinha, bêbada, finalmente se declarou ao colega do DP. O Bastos, palhaço como sempre, dançou como se fosse uma vedete, jogando charme para o diretor da empresa. Era uma turma engraçada. E sorriu. Do sorriso passou às gargalhadas... Não é que ela ontem agradeceu o grito “Gostosa!” que ouviu ao passar pelo bar da esquina? Ah... Tinha que agradecer... Há tanto se sentia uma mulher desengonçada, sem atrativos... Aquele “gostosa” feio, mal educado, foi “tuuuuudo de bom”... Só eu para fazer uma coisa dessas, pensou sorrindo...
Procuro um sorriso para enfeitar meu rosto. Voltou ao jornal. E escreveu uma carta para remeter à caixa postal do autor do anúncio. Disse a ele (ou a ela), o que eu, agora me voltando para os sorrisos de que necessito, gostaria de dizer a vocês. “Infelizmente, amigo, amiga, (vocês) o sorriso sincero, que enfeita o rosto porque revela a alma, não está sempre em nossas vitrines. Cede lugar aos bicos, aos dentes trincados, ao muxoxo, ao mau-humor. Mas, de um modo ou de outro, a lembrança de momentos especiais, de pessoas especiais, traz o sorriso de volta e enternece a vida.” Ela, a personagem, ainda disse ao destinatário: “Procure o sorriso dentro de você. Eu encontrei o meu”.