sexta-feira, 19 de julho de 2013

E VOCÊ, TERIA CORAGEM?




Flávio Passos

Tinha apenas sete anos quando surgiu no colégio o mito da Big Loura. Segundo contavam, era uma mulher alta, loira, de vestido branco que aparecia dentro do banheiro da escola. Para fazer com que essa criatura aparecesse, era necessário puxar a cordinha da descarga, bater palmas e dizer “Big Loura, Big Loura, apareça, apareça”, tudo isso devia ser repetido três vezes, respectivamente. Ao cumprir o ritual, um buraco negro se abria na porta, bloqueando sua saída, e a misteriosa mulher saía de dentro dele.
Depois que eu soube da existência dessa mulher, deixei de usar o WC da escola. Mas aí tinha o banheiro de minha casa, e eu sempre implorava para que uma de minhas irmãs fosse comigo e me esperasse na porta.
Essa lenda me atormentou por muitos anos, mas, um dia, eu e minha irmã mais velha resolvemos enfrentar a famosa Big Loura. Trancamos a porta do banheiro e começamos o ritual: puxamos a cordinha da descarga três vezes, batemos palmas três vezes e, por fim, dissemos: “Big Loura, Big Loura, apareça, apareça. Big Loura, Big Loura. Apareça, apareça. Big Loura, Big Lou-ra”... Eu não consegui terminar o ritual. Abri a porta com voracidade e saí em disparado para fora do banheiro, correndo de algo que eu nem mesmo tinha chegado a ver e nem sei se apareceu.
Hoje me lembro desses fatos e começo a rir sozinho. Penso: em como somos ingênuos a ponto de ter medo de algo que nunca vimos e nem mesmo sabemos se existe. Talvez esse seja o poder que o mito tenha: o de fazer com que as pessoas acreditem naquilo que jamais chegaram a ver, mas insistem em acreditar que existe e é como realmente os outros pregam.

Sendo verdade ou não, eu, até hoje, não me arrisco a praticar o virtual para ver a Big Loura. 

sexta-feira, 12 de julho de 2013

QUEM RESISTE A UMA LÁGRIMA?


Éverton Santos

E observem que também é com as lágrimas
que o homem lava as aflições do homem.
(Baudelaire)

Não, não me diga que você não se compadece ao ver alguém chorando.
A lágrima é como o sangue: é aquilo que deve ficar do lado de dentro porque, se for externalizado, algo aconteceu, um corpo estranho perturbou a harmonia da casa. Mesmo que você não chore ao presenciar o prantilégio de alguém - o que é normal -, acho quase inevitável não despertar um engasgo momentâneo na garganta inexpressiva, faltosa de palavras para serem manifestadas em socorro.
Os olhos podem clamar perdão ou suplicar um beijo; às vezes se deixam molhar por quem viaja, chovem - certamente - por quem vai e não pode voltar. Liberam água salgada, mas que pode vir por motivos doces: o reencontro, o nascimento, o riso desbragado, o amor provado. A lágrima é silenciosa, mas comunica; vem sozinha ou em bando; descarrega tensões, redime corações, e principalmente: expressa dor - seja do corpo, da mente ou da alma.
A lágrima é uma linguagem universal: seduz, persuade, dialoga. Ser sensível ao choro, ser amistoso à partilha da angústia, estar a postos para ouvir o atribulado, tudo isso revela a capacidade de sair de si para ir ao encontro do outro. Quem chora quer ser abraçado, confortado, quer se sentir seguro quando sente a falta de chão. A lágrima tem poderes que a nossa vã filosofia ainda desconhece.
Não, eu não nego... Sou daqueles que não resistem a uma lágrima.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O PÃO DOCE DE CREME QUENTINHO DA PADARIA DA ESQUINA


Christina Ramalho

Longo. O título é longo, tal como me parecia o caminho, que se iniciava na porta de meu apartamento, passava por um elevador preguiçoso, alguns andares, dois portões de saída do prédio, dois sinais de trânsito e dois quarteirões, até terminar no balcão da padaria da esquina, de onde surgia a deliciosa imagem dos pães doces de creme quentinhos, da fornada das quinze horas.
É impossível esquecer a força aguda e penetrante daquele aroma indefinível, que tornava minhas tardes especiais, com sabor de calmaria, infância e aconchego.
Lembro-me de que, ao olhar para o relógio e ver que quinze horas se aproximavam, nem me lembrava de qualquer resíduo de cansaço. Prontamente punha-me devidamente vestida para sair à rua, em busca do doce que me preencheria a tarde. Saía, carregando o dinheirinho amassado no bolso, ansiosa, por pressentir que logo um diabinho sadomasoquista viria soprar em meus ouvidos: “Ande, corra...! Vai acabar, vai acabar...!” E eu andava rapidamente, vencendo as calçadas com determinação e, confesso, com uma espécie de ansiedade gustativa que me enchia a boca de saliva, antecipando o gosto açucarado que logo viria.
Metros antes da entrada da padaria, o perfume macio dos pães parecia indicar o trajeto a ser cumprido. Estavam lá. Prontos para minha fome de alegria.
Sempre escolhia o mais parrudo, que tivesse o creme mais farto e o aspecto mais alegre e açucarado. Delicadeza era o que eu esperava do padeiro no momento em que separasse o pão escolhido dos irmãos de vitrine. Um gesto mais brusco, e a pinça poderia macular a carne macia do pão doce tão analiticamente escolhido... De igual modo, vigiava as mãos que envolviam o pão no plástico protetor e, em seguida, no papel cinza logo agarrado pelo barbante fino. Ai, se me ferissem o escolhido!
Passava no caixa, deixava o pão vertido em dinheiro e levava o original para casa. Saía da padaria em ritmo ainda mais acelerado que na ida. Não queria que o pão esfriasse. E, por isso, mais uma vez longuíssimo se me fazia o tal caminho. Sentia nas mãos a quentura doce do pacote e um resquício do aroma, que, instigando-me, lembrava-me do sabor de que logo desfrutaria.
Abria a porta do apartamento e corria para a cozinha. Recordo-me das tantas vezes em que me deixei cercar pela dúvida: “Dá tempo de colocar o café no copo que antes guardara geléia ou o pão vai esfriar muito?”. Quase sempre me decidia pelo café, também saboroso no ex-copo de geléia, que, nunca descobri o motivo, parecia tornar o café mais café. Desconfio que a falta de cerimônia do ex-copo de geléia deixava o café à vontade para ser autêntico!
Ah... E como não dizer? Completando o ritual, a faca rompia a unidade branca da massa cheirosa, e a margarina invadia discreta a harmonia do pão. Anos mais tarde, nos tempos das vacas menos desnutridas, também haveria a fatia fina de queijo prato, imprimindo ao conjunto um sabor esplêndido de subúrbio, fatura e simplicidade saudável.
Morder meu pão doce de creme, quentinho, tendo como cúmplice o café preto no ex-copo de geléia, era um oásis na tarde esquecida onde se escondiam um apartamento de subúrbio e uma moça quase simples, não fosse a mania antiga de fazer poemas.
Às vezes, eu cometia a tolice da gula e comprava dois ou três pães doces de creme quentinhos. Não me deixou boas lembranças tal tolice, pois, invariavelmente, a saciedade de medida perfeita era substituída pela sensação indigesta do excesso. Bom mesmo era o pão doce de creme quentinho e único em sua justeza quase divina.
Terrível é ter que confessar o quanto me doía, vez por outra, ter que, por boas maneiras, dar um talho quase generoso numa das extremidades do pão, porque uma companhia inesperada também se encantara com a magnitude da guloseima! Deus Meu, quanta avareza! Mas não era a mesma coisa comer o pão maculado pelo alheio olho guloso...
Um dia, a decepção. A fornada passaria a sair às treze horas. Sandice! Disse eu. Quem celebraria o pão doce de creme quentinho com o estômago invadido de almoço? Algo ali se perderia no tempo. E o relógio nunca mais deu quinze horas com a mesma energia. E o longo caminho ficara brevíssimo, já que se desfizera o pretexto cremoso para a saída das quinze horas.
Algo, porém, daquela rotina cercada de rituais, cheiros e gostos, permaneceria na memória de tardes singelíssimas e felizes. Eu ficara repousada ali, num tempo sem tempo, em que um pão doce de creme quentinho da padaria da esquina podia ser um pretexto perfeito para que eu alcançasse a sensação de felicidade. Da hora que se anunciava no relógio ao retorno a casa, acompanhada pelo embrulho quente, tudo estava cercado de magia, tudo tinha um significado absolutamente ingênuo, mas absurdamente completo, se penso nos padrões exigentes com que hoje a sensação de felicidade se apresenta para mim.
Por isso, passo o tempo tentando resgatar meu pão doce de creme quentinho da padaria da esquina. Vislumbro-o, em outras formas: no abraço carinhoso e apertado que minha filha mais nova me pede todos os dias; no cheiro no pescoço com que todas as manhãs acordo minha mais velha; no olhar meigo e cotidiano de minha gatinha a me esperar acabar de rodar a chave na fechadura; na palavra amiga e coruja de minha mãe ao telefone perguntando pelas novidades do dia; na expressão de alegria com que tantas vezes sou recebida nos corredores da universidade; nos pés protetores que roçam os meus na hora do sono; e em outros pequenos gestos e coisas que me cercam dia-a-dia, sem que, muitas vezes, sejam de fato percebidos como merecem.
Talvez resida aí a maior tristeza que a lembrança do pão doce de creme quentinho da padaria da esquina me traga. Algo dentro de mim se perdeu no emaranhado do tempo, algo me fez mais insensível àquilo que persiste, vivo e inteiro, no pão nosso de cada dia que nos é dado em fatias de gestos e sorrisos e palavras e imagens e gostos e pessoas e tudo mais. Em busca de sabores refinados, ignoro e até desdenho a dose singela de rotina em minha vida. E sonho alto, critico tudo e talvez fosse até capaz de ver, numa imagem de pão doce de creme quentinho que alguém me mostrasse, recalques sexuais, complexos freudianos, imaturidade psicológica e mil outras relações que minha mente cansada de ser feliz à moda dos simples constrói cotidianamente para me dar a ilusão de que cresci.
Não. Nada disso importa. Meu coração diz que o pão doce continua lá, imaculado e simples como sempre foi. Preciso apenas reaprender a cuidar da rotina de caminhar ao seu encontro, extraindo de cada passo a alegria que vestiu meus dias de persistência, ausência de cansaço e doçura.
Eis, assim, a lição do meu pão doce de creme quentinho da padaria da esquina: resgatar, sempre e persistentemente, os sabores do cotidiano, venham eles de padarias, escolas, universidades, lares, ruas, escritórios. Venham eles de qualquer lugar do mundo onde haja gente exercitando a tarefa de viver.
 (setembro de 2005)


Publicada no livro Onze cores da uva (Rio de Janeiro: OPVS, 2006. RAMALHO, Christina. Org.)